
Meu nome é Audrey. Tenho 1,75 metros, cabelos castanhos claros e muito lisos, olhos azuis, como meu pai. Minha mãe chama-se Geórgia. É baixinha, 1,55m, morena, cabelos encaracolados, olhos pretos de jabuticaba, quadris largos, biótipo típico da mulher brasileira adulta do final do século 20. Meu biótipo é conhecido como o de um “europeu puro”, como o do meu pai, que não conheço. Sou filho de “pai anônimo”, cuja identidade é mantida em sigilo. Meu pai não existe.
Minha mãe me comprou pela internet, no ano de 2002. Lésbica, ela desejava ter um filho, mas não podia nem imaginar ter relações sexuais com um homem para conseguir seu intento. Assim, resolveu comprar-me. Clicou no www.algumbancodesemen e escolheu a mercadoria que lhe convinha, com as características de um “sangue-puro” europeu. Antes, verificou se eram confiáveis os processos de seleção da empresa: a saúde do reprodutor, seus antecedentes com relação a doenças geneticamente transmissíveis, sua idade ideal. Todas as características físicas foram checadas e rechecadas.
Conforme me disse, quando me contou de onde eu vinha, teria encomendado a mercadoria feminina, mas, por erro do médico brasileiro que procedeu à implantação da mercadoria, nasci eu, um menino. Por isso meu nome é Audrey, nome feminino, herdado de Audrey Hepburn, atriz de cinema e ídolo de minha avó quando minha mãe era criança. Ela me explicou que esta história de ter nome de homem e de mulher não tem nada a ver e que era charmoso ter um nome feminino mesmo sendo homem. Não me importo muito; as pessoas não conhecem bem este nome no Brasil. Aliás, não me importo com nada.
Só tenho a minha mãe. Não adianta procurar meu pai. O www.algumbancodesemen não fornece a identidade dos fabricantes de mercadorias como eu. Sei que ele era um puro europeu, com 1,75metros como eu, cabelos castanhos claros e lisos, como os meus, olhos azuis, como eu. Muitas vezes me olho no espelho e acho que sou meu pai.
Vivi em um universo de mulheres, lésbicas, bissexuais e transexuais, com alguns eventuais amigos gays. Foram sempre gente boa para mim. Eu era alvo da curiosidade de todos e, quando fui matriculado nos colégios em que estudei, minha mãe teve o cuidado de procurar instituições que registravam somente o nome da mãe, a única garantia de filiação, hoje em dia, no mundo inteiro e também no Brasil. Lembro-me de uma enorme briga que ela pegou quando foi me matricular em um curso de línguas e a secretária registrou: Pai: desconhecido. “Está pensando que sou uma prostituta, é?”
Até hoje tenho guardado no fundo de uma gaveta um artigo que saiu em 24 de setembro de 2003, explicando acerca de como escolher e comprar filhos pela internet, com a autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Segundo o artigo, meu preço foi cerca de R$ 1.800, mas minha mãe diz que custei muito mais, se for somar o preço do médico, da inseminação, dos exames, do hospital, dos remédios. Creio que devo considerar isso uma prova de amor da minha mãe, disposta a pagar caro por sua mercadoria.
Hoje, no mês de janeiro de 2018, completo 16 anos. Minha mãe mudou de companheira duas vezes, depois que nasci. Ela é muito agitada, fala o tempo todo, sai muito, trabalha muito. Não tem tempo de parar, olhar para mim e ver o que se passa no meu interior. Aliás, minha sensação é que ela só vê meu físico e tem certeza de que não há nada dentro de mim. Quando fez a encomenda de mim ao banco de sêmen na web, não quis saber acerca da personalidade do meu pai: se era alegre ou triste, afetivo ou indiferente, reflexivo ou agitado, introspectivo ou não. Não informaram se ele era afável ou agressivo, se gostava de crianças, se gostaria que eu existisse. Não informaram se ele se sentaria no chão para brincar de carrinho comigo, ou se iria à festa do dia dos pais no colégio. Não informaram se torceria pelo meu time, se ficaria feliz com minhas notas, se ouviria minhas confidências. Só deram suas características de macho reprodutor: branco, 1,75m, cabelos castanhos claros, olhos azuis, 30 anos.
Não informaram se ele, como eu, seria agressivo, revoltado contra tudo e todos. Ninguém disse se ele era ansioso como eu, se, como eu, tinha vontade de desistir de tudo. Não consta nenhum dado sobre se, como eu, ele tinha mania de roubar tudo o que via, das lojas e das pessoas, especialmente coisas pequenas, segundo o psicólogo do colégio, em uma tentativa de preencher o meu vazio. Mas será que ele também não era assim? Será que, aos dezesseis anos, além da cleptomania ele pesava, como eu, 98 quilos, empanturrando-se de doces, sanduíches, sorvetes até vomitar tudo para comer tudo de novo? Minha mãe é magra e não rouba. Mas, e ele? Por que eu sou assim? Herdei dele? Herdei do fato de ele não existir? Herdei do fato de ele ser um fabricante anônimo de gente?
Estou agora em uma Lan house com o Tobbie, meu bichinho eletrônico com sentimentos, um tamagosh. Ele está azul arroxeado, como eu, o que, segundo o fabricante, significa que está triste. Tenho de alimentá-lo com carinho para que volte à cor normal, do contrário, ele “morre”. Decidi deixá-lo morrer. Este bicho fica sempre querendo carinho e eu tenho muita raiva quando ele fica assim.
Também eu decidi morrer. Toda mercadoria tem um tempo de uso, não é mesmo? Chegou meu tempo. Acabou meu prazo de validade. Deixo minha história aqui, registrada neste computador da Lan e envio-o para todos os bancos de sêmen que encontrei nos sites de busca. Ontem já cuidei de ir a um banco, aqui mesmo no Brasil, e fazer minha doação anônima, produzindo gente. Quero ser igual ao meu pai em tudo, na não existência e na reprodução anônima. Sei que isso ele, com certeza, fez. Minha esperança é que ele, se ainda estiver vivo, acesse o site onde fui armazenado e vendido e eles lhe contem um pouco do destino de seu produto. Tive o cuidado de fazer uma única exigência ao banco em que armazenei meu produto: que não o vendessem para mulheres de nome Geórgia.
Com a mesada que minha mãe me dá e o dinheiro da venda do meu sêmen, comprei um belo coquetel. Saio agora para um lugar de sempre para tomar uma última overdose. Assim, serei como meu pai, inexistente, e, além disso, morro feliz.
Artigo baseado em notícia acerca da venda de sêmen pela internet para inseminação artificial. A história é fictícia e aventa os danos morais e emocionais que podem atingir os filhos de pais anônimos.
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